Os rituais e os ritos
Diz-se que as sociedades actuais são sociedades dessacralizadas, ou seja, que deixaram de prestar culto ao sagrado, que deixaram de sacralizar os seus momentos e acontecimentos, que perderam a capacidade de ver para além da matéria. E o sagrado não é somente o religioso. O sagrado é tudo aquilo que respeitamos como norma de conduta valorativa e que, por ser valorativa, pretendemos disseminar e replicar. O sagrado é, pois, uma espécie de conduta sem fim onde, numa continuidade energética, armazenamos princípios, valores, crenças e a fé. Onde armazenamos tudo aquilo que para nós «é sagrado».
As sociedades contemporâneas são sociedades onde o espírito – entendido como expressão concentrada do aparentemente inexplicável e invisível – foi relegado para um plano menor. Como se, de repente, num momento histórico que passou num ápice (umas poucas dezenas de anos) o «humano» passasse a ser só matéria e tivesse perdido a sua dimensão espiritual.
Se calhar é por isso que, diz-se também, estamos em crise de valores, pois estes são mais percebidos na dimensão espiritual do que nas dimensões materiais. Num instante, passámos do sagrado enquanto dimensão social para um sagrado quase marginal, professado às escondidas, não confessado, praticado em locais não identificados. Ou seja, dessacralizámos a maior parte das práticas sociais. E essa dessacralização aconteceu, acima de tudo, porque abandonámos os rituais e esquecemos os ritos.
Os rituais sacralizam, consagram algo para a eternidade, conferindo-lhe uma dimensão sagrada; e os ritos – como normas e padrões dos rituais – permitem distinguir percursos de sacralização e afirmam um dado caminho distintivo. Um rito diferente num mesmo ritual pode significar quase uma outra veneração.
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Tenho verificado que esta dessacralização das práticas sociais – por vezes em nome de uma qualquer democratização – fragmentou ainda mais as sociedades. De uma sociedade dividida por classes passámos a uma sociedade dividida por camadas sobrepostas, onde cada camada tem os seus rituais, usa os seus ritos, mas onde não existem rituais e ritos comuns que solidifiquem os laços sociais, agreguem, agrupem.
No caminho, perdemos os rituais dos grupos profissionais, das profissões, dos ofícios. Os mestres deixaram de ensinar os ritos das profissões e dos ofícios. E os oficiais dos ofícios já não sabem que ritos utilizar nem onde se realizam os rituais – nem como.
Precisamos pois de voltar a escrever e a descrever ritos, para reconquistarmos rituais; para assim sacralizarmos as nossas crenças, os nossos valores e os nossos mesteres. A história, as tradições, os usos, os costumes, o ser, o fazer, o dar, o retribuir, o distinguir, o ornamentar, o simbolizar, tudo são elementos essenciais que devemos incorporar nesses ritos. Com orgulho e com respeito pela tradição e pela memória, pois a memória e a tradição são elementos do futuro e não do passado.
Quando conseguirmos voltar a integrar os rituais, praticando os nossos ritos, vamos saber mais sobre nós próprios, vamos conhecer melhor os outros e, acima de tudo, vamos conseguir construir melhor o (nosso) sagrado.
terça-feira, 5 de fevereiro de 2008
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