quinta-feira, 10 de julho de 2008

O "59"!

Nesses primeiros dias, no contacto com as tarefas rotineiras, destacaram-se logo os mais aptos ao desenrascanço, ou seja, começaram a aparecer aquelas figuras típicas com elevada capacidade de adaptação a todas as circunstâncias, fossem de que natureza fossem.

Um deles era um personagem fabuloso.

Tinha a alcunha do “59” e era oriundo de uma pequena aldeia da Beira Baixa, perto de Castelo Branco, mas vivia em Lisboa desde pequeno.

Começara a trabalhar aos dez anos, num ferro velho de Alcântara, mais propriamente, do Alvito, e aprendera rapidamente toda a malandrice e ratice típicas daquele bairro popular de Lisboa: era, em suma, um verdadeiro “malandro de Alcântara”.

Tinha uma compleição física notável, mas o cérebro já muito afectado por tanto álcool ingerido em pequeno e das bebedeiras constantes em adulto. O seu estado normal era de embriaguez.

Devido ao facto de ser um pouco atrasado de espírito – para não lhe chamar maluco – rapidamente se tornou o bobo da corte. Limpava as latrinas, fazia os trabalhos mais pesados, era capaz de estar duas noites sem dormir e, se fosse aliciado por uma nota de cem escudos, ainda era capaz de fazer o terceiro reforço consecutivo sem um queixume.

Não tinha a mínima noção do que era o perigo, pelo que, quando fazíamos as colunas de viaturas para ir buscar mantimentos, o “59” ia sempre de pé, no Unimog, agarrado á Dreise, uma poderosíssima metralhadora de fita, montada na parte de trás da viatura.

Fazia as maiores maluqueiras, pondo todo o pessoal a rir á gargalhada.

Era uma boa alma, o “59”, e estar ali, rodeado de muita gente, com almoço e jantar á hora certa, com cama a sério, era o que de melhor a vida lhe tinha proporcionado até então.

Toda a gente gostava do “59”, apesar de lhe fazermos as maiores tropelias.

Uma noite, estávamos no quarto de um dos furriéis, a ouvir música de jazz – Eric Clapton – quando o “59” entrou, a ver se cravava umas cervejas ou uma garrafa de whisky. Já eram duas horas da manhã e um silêncio, só entrecortado pelo barulho dos geradores de electricidade, invadia o aquartelamento.

Porque já estávamos todos um pouco tocados, dissemo-lhe:

- “59”, queres ganhar uma grade de cerveja?

Os olhos brilharam, de imediato.

- Então tens que pegar na G3 e despejar um carregador na parada!

O “59”, fez cara de amuado, e respondeu:

- Para beber a merda de uma grade de cerveja tenho que despejar um carregador? Despejem vocês!

- Tens medo?, perguntámos, em tom de desafio.

- Eu não tenho medo de nada, foca-se!, e saiu disparado.

Não demorou mais de cinco minutos. Começámos a ouvir uma rajada de metralhadora, longa, longa.

Saímos a correr e fomos ver o que estava a acontecer. O “59”, no meio da parada, com a G3 erguida ao alto, gritava “Tenho medo, eu! Tenho medo? Tomem lá o medo”.

De repente, toda a companhia estava de pé, acordada por aquele alvoroço, de armas em punho, procurando o “inimigo” que disparava rajadas de metralhadora ás duas horas da manhã.

Quando acabou de esvaziar o carregador, o amigo “59” dirige-se ao nosso grupo e, com uma enorme calma e um maior desplante, diz:

- Então onde é que está a merda da grade de cerveja? Vai já toda de uma assentada!

O resto do pessoal, ao ouvir o “59” imediatamente percebeu quem tinham sido os autores da marosca e dirigiram-nos toda a espécie de impropérios. “filhos da puta, a gozarem com o maluco”, “sacanas, a acordarem um gajo ás duas da manhã!”, “amanhã estão fodidos comigo”, etc., etc.

Escusado será dizer que o “59” foi de cana e apanhou cinco dias de detenção. Levámo-lhe a grade de cerveja prometida, bem como uma grande pedra de gelo para refrescar as “nocais” e o cantineiro ia levar-lhe as refeições á prisão improvisada nos fundos da oficina de carpintaria. Foi uma experiência fantástica para o “59” que nunca tinha tido, tal como a maioria de nós, qualquer período de férias, na vida. Gostou, habituou-se, sentiu-se importante, e, ao longo de dois anos, raro era o mês em que o “59” não apanhava cindo ou dez dias de detenção.

Quando o criticávamos, respondia-nos:

- Eu é que sou maluco não é? ’tou na prisa descansado, a beber umas bojecas, e vocês é que andam a dar o coiro. E eu é que sou maluco, não é?

 

 

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