quinta-feira, 31 de julho de 2008

Um Jarro de Limonada!

            O mar estava ali perto, constante, todos os dias, inundando com aquele odor ácido e saboroso a iodo e a sal, as nossas almas e os nossos corações infantis.

            Ao longe, por cima dos muros de tijolo e cimento que rodeavam a quinta, nos dias agrestes de inverno, víamos os cordeirinhos das ondas, muito brancos, no pico da curvatura, parecendo novelos de lã a desdobrarem-se continuamente na direcção da praia.

            O mar, ao bater nas rochas e nos baixios, invadia de sons graves e profundos, a nossa imaginação.

            Ficávamos cheios de medo, encolhidos, sem nos mexermos, a ouvir aquele barulho.

            Estávamos sentados no castelo, ao fundo da Quinta, um castelo que o meu avô construíra, com infinita paciência e sabedoria, nos poucos intervalos da sua labuta diária, para os miúdos brincarem.

Era um castelo a sério, feito de tijolo maciço e coberto a argamassa, com ameias, vigias e uma larga porta, estilo gótico, encimada por uma figura heráldica que nunca entendi. Provavelmente, algum símbolo celta que o meu avô trouxera, na sua alma generosa, das minas galegas, lá para os lados de Pontevedra, ou apenas uma inspiração de momento ao sabor dos movimentos da colher de pedreiro e daqueles olhos astutos e ternos.

            O castelo era o nosso refúgio, após as aulas, na escola primária oficial, onde o Senhor Almeida era o temor.

 

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            O senhor Almeida, o mestre-escola, era uma daquelas figuras terríficas, cinzentas, malvadas, que punha toda a criançada em pânico quando pegava na longa cana-da-índia, ou na menina-dos-sete-olhos, como lhe chamava, uma régua de madeira grossa, castanha, polida de tanto se esfregar nas nossas mãos húmidas de medo e de ansiedade.

            Quando estávamos nas aulas do Senhor Almeida, olhando o quadro preto de ardósia, só pensávamos no nosso castelo, nos índios, nos cowboys, nas pistolas, e nos cuidados a ter com o Sô Joaquim – assim se chamava o meu avô – pois, caso pisássemos as flores ou estragássemos a horta, tínhamos o Sô Joaquim a correr atrás de nós com uma sachola, ou uma enxada, sempre á procura dos nossos rabos, onde nunca acertava, mas fazia-nos correr toda a Quinta a fugir daquela tareia que nós sabíamos que nunca aconteceria. Era o nosso jogo.

O Sô Joaquim nunca era capaz de nos bater mas que nos fazia correr desalmadamente, lá isso era verdade.

            O nosso castelo, situado ao fundo da Quinta, junto ao muro grande que a separava de outra, essa sim ,virada de frente para o mar, era muito cobiçado e vulnerável, pois os miúdos da quinta vizinha atacavam de repente, vestidos de índios e armados com canas, arcos e setas, aos gritos, atemorizando a minha avó e as minhas tias.

            Devo confessar que a primeira preocupação da minha avó ao ouvir aqueles gritos estridentes da horda de índios, e depois de barafustar modestamente, era ir a correr preparar o lanche para os meninos, pois depois da brincadeira, deviam estar cheios de fome.

            Arranjava uns papo-secos com muita manteiga, marmelada, leite e, se fosse no Verão, um largo jarro de vidro com limonada, aromatizada com uma folha de laranjeira acabadinha de apanhar.

Enquanto os índios e os cowboys se guerreavam, já na expectativa do lanche da VÓ ‘Estreia – a minha avó tinha um nome raro, Austreia, com origem no Redondo, e simbolizando talvez, o pôr-do-sol por detrás da serra de Ossa, perto da fábrica dos pirolitos, aqueles pirolitos que faziam de berlindes e que entretiam jogatinas que mais não precisavam do que três pequenas covas na terra, para se realizarem autênticos campeonatos do pequeno mundo em que vivíamos – enquanto os índios e os cowboys se guerreavam, dizia, a Odília, a cozinheira, carregava largos troços de madeira para o fogão, mais um balde de briquetes da arrecadação que ficava por baixo da grande janela da cozinha, de onde saíam uns odores cada vez mais desenhados e permanentes, fazendo antever os deliciosos pitéus que preparava para o jantar.

 

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            Aquelas guerras com os vizinhos da Quinta ao lado, virada para o mar, no castelo feito pelo meu avô, eram verdadeiras batalhas infantis, onde tinha sempre que haver um vencedor. Um dia os índios, outro os cowboys. Não podia acontecer ganharem os mesmos dois dias seguidos, pois isso iria tirar brilho ao esforço equivalente que os dois grupos, com rapazes e raparigas, desenvolviam. Talvez já fosse um embrião da alternância em democracia, sentida como inevitável naqueles longínquos tempos de 50.

            As memórias da II Grande Guerra Mundial ainda estavam muito presentes. Comíamos, por vezes, comida em lata, de origem americana – o rostbeef – que havia sido armazenada pelo dono da quinta onde o meu avô era o caseiro de confiança, para fazer face ao racionamento.

            Ouvíamos contar muitas histórias da falta de açúcar, da falta de carne, da falta de azeite e de óleo, da falta de manteiga, das senhas de racionamento, mas a minha avó fazia sempre questão de dizer, no final das conversas, que nós tínhamos sido uns privilegiados, pois nada nos faltara devido ao açambarcamento feito, durante anos, pelo patrão do meu avô, que sempre doara, semanalmente, durante a guerra, um saco de arroz aos pobres.

            São desses tempos as recomendações para nunca se deixar comida no prato.

 

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Todas as manhãs, por volta das nove horas, soava o sino que havia junto ao portão de ferro e que servia de campainha.

Era a peixeira, naquele tempo chamada varina, com um grande cabaz de vime á cabeça, cheio de peixe, acabadinha de chegar, a pé, da praia de Cascais, com peixe fresco.

- Ó menina Estreia, veja esta sardinha! Olhe para estas guelras encarnadinhas, ainda cheias de sangue. É só a 5$00 o quarteirão! ( neste tempos, o quarteirão era, a par da dúzia, a unidade de medida para o peixe. Um quarteirão correspondia a 25 unidades, mas mandavam as regras que se acrescentasse sempre mais cinco unidades que “eram para o gato”).

A minha avó deitava a mão ao cabaz, mexia, remexia, olhava, cheirava, até se certificar que o peixe era de facto fresco e a sardinha não estava moída.

Fazia contas de cabeça, e dizia:

- Ó menina Rosa, dê-me dois quarteirões. Ponha aqui neste alguidar, mas, veja lá, não quero sardinhas moídas!

A senhora Rosa, mandava para o fundo do alguidar uma mão-cheia de sal grosso e, com imenso cuidado, ia ajeitando as sardinhas, uma a uma, lado a lado, em camadas perfeitas, para que apanhassem o sal por igual. A minha avó, enquanto rebuscava nos bolsos do avental de chita á procura das moedas para pagar o peixe, já pensava no que iria fazer para o almoço.

            Amanhã era Sábado, dia em que vinham os patrões, chegavam de Lisboa, de carro – um “DeSotto”, negro, muito grande - logo a seguir ao almoço, pelo que a minha avó recomendou á Senhora Rosa para não se esquecer de trazer, amanhã de manhã, dois gorazes e um pargo, os peixes preferidos do patrão-velho, o patriarca da família, que lambia os beiços por uma cabeça de goraz, cozida, acompanhada pelos grelos e batatas acabados de apanhar pelo meu avô na horta que ficava junto ao castelo.

 

3 comentários:

República dos Bananas disse...

três, dez tostões :-D é o preço que me ocorre para as sardinhas, no final dos anos 60. Como sempre tive queda para a brincadeira, dizia eu que as sardinhas eram a três dez tostões cada uma.
Quanto à cana da india, ainda no ciclo apanhei com ela mas não me incomodava muito; as reguadas não me deixaram marcas psicológicas eventualmente porque os miúdos eram menos marica naquele tempo ou porque tivesse levado poucas...à excepção de uma vez na 4ª classe que apanhei oito reguadas em cada mão, oito, uma por cada erro de um ditado, e mais oito por não ser hábito dar erros; sobre esta, passaram-se cerca de 45 anos, mas não a esqueço e ao olhar para trás acho-lhe piada, no entanto embora veja inúmeras vezes a professora, ela não me reconhece e eu finjo que não a conheço. :-D :-D

hfm disse...

Gostei muito de o encontrar e de o ler também por aqui.

Pati Oliveira Santos disse...

Adorei! Levou-me a um tempo e lugar que não vivi, a recordações de infância que não tive (talvez pela época, continente e género ser diferente), mas que não me importava nada de ter vivido. Parecia o início de um romance a ser lido enroscada no sofá numa tarde chuvosa de domingo.